“Toda a festa religiosa, todo o tempo litúrgico, representa a reactualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico […].
Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’, e a reintegração do Tempo mítico reactualizado pela própria festa.” (Eliade, 19–, p. 81)
As romarias, ou romagens, são festas em honra de um santo ou de uma invocação religiosa. A romagem à Senhora da Luz assenta num anterior caminho de peregrinação em direção à fonte da Machada, a cujas águas se atribuíam virtudes miraculosas, assinaladas por uns clarões de luz que surgiam sobre o local:
“[…] assi como hoje vem os romeiros de distantes & remotas partes com incredivel fervor a visitar a soberana Imagem da Luz, assi com igual vinhão naquele tempo a ver os luminosos, & misteriosos sinaes, que della no alto apareciam; vamos, (esta era a comum pratica de todos) ver os lumes do Ceo que em Carnide aparecem sobre a fonte do Machado” (Soveral, 1610, fl. 52r)
A tradição destes clarões sobre a fonte terá determinado a invocação da Virgem associada ao local, confirmada pelo achamento miraculoso da imagem de Nossa Senhora da Luz por Pero Martins.
Segundo se conta, Pero Martins, natural de Carnide, estava preso em África quando, por diversas vezes, lhe apareceu a Virgem, aureolada de luz, assegurando-lhe que o tiraria do cativeiro e recomendando que, no regresso à terra natal, mandasse erguer, sobre o lugar da fonte milagrosa, dita da Machada, uma ermida com a invocação de Santa Maria da Luz, cuja imagem encontraria no local. Pero Martins foi libertado e regressou a Carnide em 1463. Perto da fonte, encontrou a imagem e obteve autorização do bispo para construir a ermida, o que realizou com as contribuições dos vizinhos. A imagem miraculosa foi solenemente entronizada a 8 de setembro de 1464. Na mesma altura, foi instituída a confraria, de que faziam parte o rei D. Afonso V e o bispo de Lisboa, cujo prestígio arrastou as principais casas nobres, empenhadas na conservação da ermida, mas também em custear as despesas com a festa e romaria.
Os caminhos de Carnide, outrora de “espessos bosques” (id., fl. 52v), tornaram-se, então, “bem a sombrados & alegres” (id., ibid.):
“enontrandose nelle de ordinário o Portugues, Espanhol, o Italiano, com o Frãces, o Bretão, & Alemão, os de cavallo, com os de covhe: a gente de pè, hu[m]a com violas se acha, com outra tangendo adufe: que tudo por ser vario faz tão alegre, e aprazivel esta legoa de caminho, que muytas pessoas da Cidade Lisboa a tomão algu[m]as vezes tanto por passeo de recreação como por devação” (id., fl. 53v)
A romaria ao santuário de Nossa Senhora da Luz fixou-se, desde 1464, “no dia que he o mesmo de sua Natividade a oito de Setembro” (id., fl. 53v). Coincide, assim, com o termo das colheitas, tornando-se numa festa de ação de graças pelos resultados da atividade agrícola, em conformidade com o caráter marcadamente rural da zona.
Em finais do século XVI, com a construção do santuário, inserido num complexo arquitetónico que compreendia um convento e hospital, o primitivo hospital da ermida do Espírito Santo entrou em declínio, acabando por desaparecer, e o culto foi absorvido pela devoção à Senhora da Luz.
Atualmente, a festa acontece no último domingo de setembro, a culminar um mês de feira e festividades locais. Tal como a maioria das festividades religiosas, inclui uma componente de devoção privada, relacionada com a prece e o pagamento de promessas, outras, de dimensão pública, como a missa solene, o sermão e a procissão.
A partir de Carnide, o culto à Senhora da Luz estendeu-se a outras zonas de influência missionária portuguesa no contexto da expansão marítima e colonial, em particular no Brasil, onde a festa se celebra igualmente a 8 de setembro.
Procissão, 27 de set. 2015: observação participante
Em 27 de Setembro de 2015, deslocámo-nos a Carnide com o objetivo de participarmos na Eucaristia, celebrada na Igreja paroquial e, posteriormente, incorporarmos a Procissão que percorreu a parte velha de Carnide.
O trajeto inicia-se na Igreja, depois da Eucaristia aí celebrada. A imagem, levada numa viatura dos Bombeiros, percorre a rua Da Fonte, a rua Maria Brown, o Largo do Jogo da Bola, a Estrada da Correia, a rua Neves da Costa, o Largo da Praça, a Travessa do Pregoeiro, a Azinhaga das Carmelitas, o Largo da Luz e termina com o regresso da imagem.
O cortejo abre com o corpo de escuteiros, seguindo-se os sacerdotes que rezam o terço recorrendo a um microfone. Imediatamente depois, o pálio que abriga o sacerdote, uma irmandade e a finalizar o carro de Bombeiros onde vem a Imagem.
O espaço percorrido apresenta marcas mais ou menos explícitas que o demarcam do quotidiano, entendido aqui como tempo profano.
Uma das marcas é o número elevado de pessoas que dele se apropria durante o decorrer da procissão. Neste número encontram-se os que visivelmente participam por se integrarem nas alas que formam o cortejo, rezando o terço ou empunhando uma vela. Dentro destes há os que se autovigiam, impondo silêncio, cumprindo as normas que conhecem e dominam.
Há também os que apenas observam. São os que olham aqueles que praticam o ritual.
Contudo, estes dois grupos formam um só. É aquele que presencia, que está. Que tem a preocupação de silenciar vozes que, porventura, perturbem o acontecimento.
Tendo em conta que estamos numa freguesia do concelho de Lisboa, geograficamente próxima do centro, é muito difícil detetar quem são os forasteiros e os residentes. Além deste dado, os habitantes deste núcleo são escassos.
Outra das marcas no espaço é a presença de colchas penduradas nas janelas das casas que se encontram ao longo do percurso.
Fontes:
Araújo, A. S. (1977). O santuário da Luz: Glória de Carnide. Lisboa: Paróquia de Carnide.
Araújo, A. S. (2001). Vida cristã em Carnide no período áureo do Santuário da Luz -1600-1740: Na perspectiva dos visitadores diocesanos. Braga: [s.n.]. Sep. de: (2001). Itinerarium, 47,(170).
Calado, M., & Ferreira, V. M. (1993). Lisboa: Freguesia de Carnide. Lisboa: Contexto.
Eliade, M. (19–). O Sagrado e o profano: A essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil
Pereira, G. (1898). O lindo sítio de Carnide. [S.l.: s.n.].
Soveral, R. (1610). Historia do insigne apparecimento de N. Senhora da Luz, & suas obras marauilhosas. Em Lisboa: Por Pedro Crasbeeck.